O dia em que a Cora falou

nycolas ribeiro
8 min readMay 31, 2021

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Saí puto do banho quente. A resistência da ducha dupla estava para queimar pela segunda vez no ano, justo agora que uma frente fria se acomodou sobre o estado de São Paulo. Ao chegar no quarto, Cora estava deitada na ponta da cama enrolada em si mesma, como um croissant coberto de pelos caramelos. Me acompanhou com os olhos sem levantar a cabeça e, quando abri a gaveta de cuecas, ela ergueu o pescoço.

— Qual foi a última vez que você colocou uma calça jeans? — perguntou a vira-lata numa curiosidade debochada.

Não me assustei. Eu sabia que esse dia iria chegar. Ainda assim, foi estranho ouvir sua voz pela primeira vez.

— Semana passada, quando fui ao mercado — respondi jogando a toalha na cama — Você me viu colocando. Inclusive achou que ia sair comigo.

— Nós vamos sair agora? — disse ela se levantando e espanando o rabo num sinal de felicidade.

— Não foi isso o que eu quis dizer — adverti enquanto colocava a cueca. Pela primeira vez, senti vergonha de ficar pelado em sua frente. Agora que ela falava, poderia fazer comentários sobre o peso que ganhei nessa quarentena de quinze meses, assim como falo que ela está gordinha ao fazer carinho em sua pança de nove mamilos (sim, ela tem um a mais, ou um a menos).

— Suas roupas de moletom já estão gastas — comentou Cora deitando-se novamente e me lançando um olhar de desaprovação.

— E meus jeans estão apertados — respondi colocando a calça que comprei há cinco anos numa arara de “Últimas oportunidades”, os vinte reais mais bem aproveitados da minha vida.

Enquanto secava meus cabelos na frente do enorme espelho do guarda-roupas, ela lambia as patas traseiras com força. Foi a minha vez de reprová-la com o olhar, mas, como sempre, ela pareceu não se importar.

— Cora! — repreendi com firmeza — Para! Você está machucando suas patinhas.

— Ah, você tem o direito de manter esse cabelo sem corte como um lembrete de que a sua autoestima está destruída e eu não posso desenvolver a mania de lamber as patas até criar feridas? — disse ela sem dar um respiro entre as palavras.

Cora sempre foi inteligente, com a capacidade de se comunicar com olhares cínicos e bufadas categóricas, querendo impor sua opinião em assuntos dos quais não foi convidada a participar. Mas nunca pensei nela com uma fala tão eloquente, tão… malvada.

— Eu sei, estamos todos enlouquecendo, mas você não precisa falar assim comigo — respondi tentando arrumar a juba que há seis meses cresce de forma irregular em minha cabeça — Estou falando apenas para seu bem. Lembra quando suas almofadinhas ficaram em carne viva e tive que enfaixar a sua pata?

— Aquilo foi um inferno — lembrou Cora, agora lambendo as patas com mais cuidado — Você sabe que minha coordenação motora para de funcionar com qualquer peça de roupa grudada no meu corpo.

— Porque você é doida — disse num tom de brincadeira.

— E você acha que isso não tem nada a ver com você — rebateu ela com seriedade.

Ah, então é essa a sensação. Imediatamente pensei no que a minha mãe responderia para mim em diálogos semelhantes a esse. Não, melhor não entrar nesse terreno agora. Preferi ignorar a rebeldia de Cora e me sentei ao seu lado na cama. Como sempre, ela se espreguiçou e se arrastou em minha direção, forçando as patas babadas na minha coxa e exigindo carinho. Passei os dedos nos pelos lisinhos atrás de sua orelha, onde eles são mais macios e sedosos do que o restante do seu corpo. Quando finalmente selamos a paz, os gritos do prédio vizinho despertaram a ira de Cora.

— Seu sem vergonha! Você não presta! — gritava a cinquentona bipolar para o celular — Pode ligar para meus filhos. Liga! Vai! Liga!

Cora pulou do meu colo para a janela que fica logo acima da minha cama (“nossa cama”, me corrigiu ela depois de ler esse texto pela primeira vez). Com as patas traseiras no colchão, a bundinha chupada e o rabo duro em sinal de alerta, ficou ouvindo a briga com as orelhas eretas.

— AU AU AU AAAAUUUU — latiu ela para além da tela de se segurança, depois virando-se para mim — Começou cedo hoje, vem ver!

Aceitei seu convite para ouvir melhor os gritos que geralmente ecoavam depois da meia noite e, naquele dia, decidiram quebrar a monotonia do condomínio às cinco da tarde.

— Acho que ela está querendo arranjar briga com algum familiar — supôs Cora entre bufadas — Pelo menos não está chamando o outro vizinho de estelionatário.

— E por acaso você sabe o que é estelionatário? — perguntei.

— Algo estelar — respondeu ela com a mais absoluta certeza — Que trabalha com estrelas.

— Certo — disse tentando não rir dela falando bobagens naquela posição de cão de guarda.

Como se não bastasse os gritos da senhora e da vira-lata caramelo, agora o espetáculo seria completo. Vi que o já conhecido carro branco estava entrando no estacionamento, pronto para estacionar na vaga em frente ao nosso quarto. Os latidos aumentaram quando Theodoro (ou Théo, para íntimos, como nós) pulou para fora do veículo do casal de lésbicas. Como sempre, o lulu-da-pomerânia manteve a pose e não deu um latido, desfilando graciosamente pelo estacionamento enquanto suas mães retiravam sacolas de plástico do porta-malas.

— Oi Cora! Linda! — gritou uma das mulheres, enquanto a outra só acenava com um cigarro pendurado na boca.

— AU AU AU AU! — latia Cora para Théo que, como bom garoto de condomínio, parecia não se importar com a atenção lhe dada.

— Calma, Cora, é amiguinho — falei fazendo carinho em suas costas e rindo de volta para as mamães do pomposo cachorrinho.

— Eu quero cheirar a bunda dele! — disse Cora saindo da janela e andando pela cama nervosa, entregue à uma crise de abstinência por cheiro de rabo de lulu-da-pomerânia.

— Você diz isso agora, mas quando encontra com ele fica com medo, se fecha e não faz nada!

— Ele é muito pequeno, porra! — gritou ela — Isso me assusta! Cachorros pequenos são assustadores!

— Ele não é o pinscher dos vizinhos do bloco B — argumentei já sentindo o sangue esquentar só de lembrar daquele anticristo disfarçado de cachorro de colo — É o Théo! Seu amiguinho! Ele é fofo!

— Eu sei! Eu sei! Mas quando o vejo na calçada, fico com vergonha. Eu sempre ajo como uma louca na janela e ele parece não se importar.

— Calma, macho é assim mesmo — disse puxando-a para um abraço –Tá na cara que o Théo é biscoiteiro. Ele com certeza tem uma conta no Instagram administrada pelas mães.

— Falando nisso… — disse ela recobrando a sobriedade — Por que eu não tenho uma conta no Instagram?

— Eu sabia que você iria jogar isso na minha cara um dia! — falei levantando e vestindo uma camiseta preta com manchas de água sanitária.

— Me responde!

— Porque eu não tenho energia para isso — respondi com honestidade — com o passar do tempo se tornaria mais uma rede social abandonada, como meu LinkedIn e perfil no Medium.

— Entendo — falou Cora com uma compreensão que destoava do estado de espírito em que ela se encontrava um minuto antes.

Ficamos em silêncio enquanto eu pescava um par certo na bagunçada gaveta de meias. Meus pés já estavam gelados e meus cabelos começaram a secar sem eu penteá-los, o que sempre resulta em frizz e volume.

— Eu só acho que eu poderia fazer posts interessantes — disse Cora do nada, insistindo de forma sutil na ideia de ter um Instagram.

— Tipo o que?

— Eu poderia falar sobre autofelação, por exemplo.

Se estivesse bebendo um copo d’água naquele momento, eu provavelmente cuspiria o líquido pelas narinas. Como não estava, consegui me engasgar com o ar.

— Que foi? — perguntou Cora com a feição mais neutra possível — Como se vocês humanos não se fascinassem com essa técnica que poucos da sua espécie conseguem desenvolver. Eu posso falar da minha experiência…

A encarei sem graça. Não que eu seja um pudico que nunca tenha tentado chupar o próprio pau, mas a naturalidade com que ela falou a primeira pauta em que veio à mente me fez perceber que existiam outras (piores) no fundo dela, e eu não queria descobrir quais são os benefícios de, ocasionalmente, comer o próprio cocô.

— Você não vai ter um Instagram e pronto! — disse depois de fazer com que o ar entrasse nos meus pulmões pelos caninhos certos.

— Ok, ótimo! Esquece — disse ela pulando da cama para o chão e fazendo questão de bater as unhas no piso laminado de madeira.

Fiquei no quarto tentando assimilar toda a conversa que tivemos nos vinte minutos entre a minha saída do banho e a saída invocada de Cora. Ela era mais inteligente falando a língua portuguesa do que se comunicando pela canina. Com exceção do seu entendimento sobre estelionatários, claro.

De noite, quando meu namorado chegou, ela fez a mesma festa de sempre, pulando do sofá para o chão, do chão para o sofá, latindo e exigindo atenção. Mas não disse uma palavra humana.

— Adivinha quem conversou comigo hoje? — perguntei a ele, animado para mostrar o novo truque da Cora.

— Quem?

— A Corinha! — respondi todo orgulhoso olhando para ela — Fala com ele, filha.

— AU! — foi tudo o que ela latiu.

— Ela sempre conversa assim comigo — disse ele rindo e me abraçando.

— Eu tô falando sério — retruquei — ela conversou comigo! Ela falou, tipo… palavras!

Olhamos para ela na expectativa dela começar a tagarelar e provar que eu não estava louco, mas ela só deu um uivo fino e demorado.

— Amor, você tá bem? — perguntou ele dando um beijo no meu pescoço enquanto eu encarava Cora com raiva.

— Eu não estou louco! Ela falou! — insisti.

— Tá bem! — concordou ele rindo e olhando para meus cabelos com o mesmo olhar de reprovação que Cora lançou sobre mim mais cedo.

Deixei os dois na sala e corri para o espelho, onde encontrei meu reflexo descabelado e barbudo. Eu parecia um louco! Um doido que só usa moletom velho, que cortou o relacionamento com o cabeleireiro e que acredita falar com sua cachorra. Um louco!

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