Flertando com religiosidades

nycolas ribeiro
6 min readSep 21, 2020

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Antes de tudo, você precisa saber que, desde o dia que nasci, fui criado no espiritismo. E, apesar de ser feliz na doutrina, em diferentes momentos da vida eu tive contato (e curiosidade) com outras religiões.

Aos sete anos, me tornei melhor amigo do menino de mesma idade que morava num sobrado da esquina. Minha primeira amizade oficial. Ele era o primogênito de uma família católica praticante, daquelas que têm santinhos enfeitando os cômodos e usam camisetas com uma estampa de má qualidade da imagem de Maria, Mãe de Jesus. Em dias úteis, o tempo de brincadeira era estipulado conforme as demandas da escola. Aos finais de semana, de acordo com a religião dele: sábado era dia de catequese, no domingo ele tinha missa. Faltar nunca foi uma opção, então nossas aventuras como mestres Pokémon eram interrompidas pelos deveres religiosos.

Essa foi a primeira e única vez que flertei com o catolicismo.

Outros colegas de escola também eram catequisados. Então, como a primeira série já era assustadora por si só, não queria ser excluído da turma. “Quero ir à catequese”, pedi a minha mãe. Aparentemente, a seleção era rigorosa demais e, segundo a família do meu melhor amigo, existiam algumas regrinhas (das quais não lembro) para participar, requisitos básicos que eu não tinha. Entretanto, eles propuseram me levar a uma missa, e eu topei. “Meu Deus, tenha misericórdia de mim. Que coisa chata!”, pensava olhando para o banco de madeira envernizada. Essa foi a primeira e última vez que fui a uma eucaristia. Depois dessas breves e simples experiências, catolicismo só me conquistou com feriados religiosos (amém!) e casamentos que depois servissem buffet com arroz à piamontese e bife ao molho madeira.

Ainda quando criança, sempre passava alguns dias das férias na casa das minhas tias evangélicas. Foi lá que eu conheci a música gospel e expressões como “tá amarrado, em nome de Jesus!”. Aos sábados, era convidado (ou obrigado) a ir ao culto, afinal toda a família iria e eu, uma criança espírita, não poderia ficar sozinho em casa vendo televisão. Logo no começo percebi que aquilo também não era para mim, mas, ao contrário da única missa, fui em muitos cultos e algumas Escolinhas Dominicais. Lembro de preferir sentar nos bancos do fundo da igrejinha metodista de bairro. Assim não precisava fingir prestar atenção e nem ficaria surdo com os gritos da caixa de som. Em determinado momento do sermão, fugia para a calçada para brincar com minhas primas e outras crianças vestindo mini-roupas sociais.

Essa foi a vez que comecei a sair com o protestantismo.

Das noites evangélicas, as músicas eram a única parte que eu realmente gostava. Não das letras em si, mas das melodias. Eram bonitas, e meu tio tocava violão no final do culto, então era como se, naquele pequeno espaço-tempo, eu fosse parente de um rock star. O louvor “Leão de Judá” era o meu favorito (e o único que lembro o nome). Era uma música agitada com refrão envolvente. Depois do jantar, pedia para meu tio tirá-la no violão. E, quando acabasse, que tocasse de novo. Não sei o que dizia a letra, mas foi a única música gospel que me encantava.

Em outras férias, já com onze anos, decidi retribuir a introdução às músicas evangélicas. Acreditava que aquela era uma relação mútua, de troca de experiências: você me apresenta o seu mundo, eu apresento o meu. O problema é que eu decidi levar para a casa de uma das minhas tias o recém lançado álbum C’est La Vie, da girl band Rouge, que nem chegou a ser tocado. Certa vez, levei o livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal” para ler no ônibus e o item foi confiscado assim que cheguei. Então, para ter certeza de que eu não contrabandeava um “Livro de São Cipriano” ou um colar de pentagrama, minha tia passou a revistar minha mala (onde meu boné jeans bordado com o brasão da Grifinória tinha que permanecer até o fim da viagem).

“Como um fantasma eu vou ser, um pesadelo pra você, não dá pra fugir nem se esconder! Eu sempre vou achar você!”

Voltando ao segundo álbum do Rouge, a sexta (!) música se chamava “Fantasma”, e foi a primeira coisa que acendeu o alerta durante a inspeção de bruxaria. Da contracapa, minha tia foi direto ao encarte para conferir a letra da canção antes de permitir ouvi-la ou não. Para piorar, ali constava todos os créditos dos compositores e revelava que, na verdade, “Fantasma” era uma versão em português de uma música do grupo EyeQ (um Rouge dinamarquês), e que, originalmente, se chamava “Demon”. A sexta música (número da besta) do álbum daquelas meninas que, um ano antes, conquistaram sucesso nacional com um cântico incompreensível (aserehe ra de re, de hebe tu de hebere etc), se chamava “Demônio”. Tá amarrado, em nome de Jesus! Isso, obviamente, era o Inimigo se disfarçando de música pop para corromper a alma das crianças seduzidas pelo ritmo Ragatanga. E eu caí direitinho.

Já adolescente, tive um breve casinho com o budismo.

Uma das minhas melhores amigas do ensino médio seguia a filosofia de Nichiren Daishonin e, um dia, me convidou para ir a uma reunião na qual apresentava ideias muito bonitas bem semelhantes das quais eu já partilhava com o espiritismo. No encerramento, várias pessoas de semblantes pacíficos recitavam o mantra “Nam-Myoho-Rengue-Kyo” por alguns minutos. E, nesse momento, fiquei sozinho com meus pensamentos, sem saber o que fazer ou para onde olhar. “Será que posso orar o Pai Nosso? É a única oração que eu sei!”, pensava nervoso. Então, também percebi que aquilo não era para mim.

O espiritismo foi um casamento de uma vida toda.

Na minha vida paralela e pessoal, não existiam grandes cobranças ou expectativas religiosas vindas da minha mãe. Ela me proibia de falar alguns xingamentos cotidianos, como “maldito” e “inferno”. “Palavras têm poder”, advertia. Também pedia para eu ir na mocidade, um encontro de jovens espíritas, aos sábados. Mas com o tempo, e depois de umas leves discussões, percebeu que também não podia me obrigar a isso. Segundo minha mãe, ela já tinha me apresentado um caminho a seguir, agora cabia a mim fazer as minhas próprias escolhas.

Sempre me identifiquei com o espiritismo, mas, depois de dezenove anos juntos, nos divorciamos. Não totalmente, mas em partes. Quando entendi, aceitei e assumi a minha sexualidade para minha mãe, não foram bons tempos nem para mim e nem para ela. Depois de falar com Deus, ela conversou com meu cardiologista (que fez o favor de dizer “normal, é só uma fase de experimentação sexual”), e até mesmo com a diretora do meu ex-colégio (fiz fundamental numa escola com Método Montessori). Por fim, me entregou o livro “Homossexualidade, Reencarnação e Vida Mental”, de Walter Barcelos, e pediu que eu lesse. Até hoje, quase dez anos depois, o marca página está parado na 115ª.

O espiritismo é lindo e bem gay friendly. Talvez seja doutrina que eu mais goste e mais me sinta confortável e bem-vindo. Mas ainda assim é uma doutrina. Ao ler o livro, bastava o título dos capítulos para causar desconforto comigo mesmo. “O Instinto Sexual nos Reinos Inferiores”. “A Expansão da Liberdade da Opção Homossexual”. “A Insegurança, Medo e Frustração nos Impulsos Afetivo-Sexuais”. Para mim, algumas coisas na vida não precisam ser necessariamente um resgate ou uma expiação. Sexualidade é uma delas. Gostar de rola significa apenas que você gosta de rola, e não que você está pagando pecados de vidas passadas.

Olhando para trás, percebo que todas essas experimentações contribuíram para eu entender melhor quem eu era, mesmo que por muitos anos isso me machucasse. Graças a Deus aquelas orações culpadas e amedrontadas (“por favor, Deus, não deixe que eu seja gay!”) deixaram de existir. Hoje, a minha religiosidade é muito pessoal. Sou, literalmente e espiritualmente, uma religião de um homem só. Tenho minhas crenças (boa parte delas vindas do espiritismo) e minhas conversas com Deus, e Ela tá ligada que a nossa relação é próxima e saudável. Caso contrário, não me sentiria tão abençoado. Com a gente não há cobranças. Há escolhas, consequências e consciência. Bonés, músicas e sexo com o mesmo sexo são permitidos. Não há culpa de ser quem sou. E isso faz um bem danado.

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