Por que eu continuo reclamando do mercado de trabalho como se fosse a primeira vez

nycolas ribeiro
5 min readJun 27, 2016

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Na comédia romântica de 2004, Henry (Adam Sandler) se apaixona por Lucy (Drew Barrymore), uma professora de arte que sofre de perda de memória adquirida após um acidente de carro. Resultado da sua amnésia anterógrada, ao ir dormir a protagonista esquece todos os eventos que procederam ao acidente, vivendo o mesmo dia do acidente como se fosse a primeira vez.

A narrativa do filme transforma o desafio do personagem de Sandler (conquistá-la todos os dias) em algo extremamente romântico, mesmo com a gente sabendo que, na vida real, isso seria cansativo pra caralho. Sei disso porque parte da minha exaustão profissional vem da constante necessidade de defender e validar a relevância da minha profissão, como se fosse a primeira vez que ouvissem em “produção de conteúdo”.

Longe de ser um problema exclusivo de redatores, todos os profissionais da comunicação — publicitários, relações-públicas, designers, fotógrafos, etc — também precisam provar seu valor constantemente, uma vez que sempre há um “sobrinho” que mexe com essas “paradas de redes sociais” e cobra R$20,00 por um logo feito no WordArt. Paralelamente, situações como essas são improváveis no cotidiano de um médico ou engenheiro, por exemplo.

A sociedade sabe da importância da informação na era da comunicação, assim como as empresas sabem da necessidade de um bom marketing, mas ambos não reconhecem (por falta de conhecimento ou má fé) o trabalho que precede qualquer produção concluída, seja a identidade visual de uma marca ou um tweet de 140 caracteres.

Assim, eles vão tentar a todo custo se convencerem que produzir conteúdo é fácil, rápido e barato, até que isso se transforme numa verdade universal e eu assuma o título de assalariado-reclamão nas redes sociais.

Exausto

Mas não é só escrever?

Sim, é “só” escrever. É “só” abrir o Word e as palavras vão surgindo em cascata. Fazer uma graduação não tem nada a ver com se especializar em algo que, na velocidade pós-moderna, requer uma contínua atualização.

Mas oito horas para fazer uma cirurgia? Não é só fazer um corte com bisturi?” e “Esse valor por um projeto arquitetônico? Não é só sentar e desenhar a planta?” podem ser exemplos absurdos da minha parte, mas é só assim que algumas pessoas conseguem compreender que SIM, há toda uma estratégia e uma base de estudo em cada tarefa realizada por um comunicólogo. Como em qualquer outra profissão.

As pessoas não imaginam o tempo de pesquisa, checagem de informação, alinhamento com o planejamento e brand persona, adequação de linguagem e tantas outras etapas que há por trás de um “simples” post de Facebook. Quando colocamos a indomável criatividade nesse processo, o tempo se torna uma jaula irracional.

É uma afirmação batida, mas verdadeira: é muita informação em pouco tempo.

Antes das 10h o Facebook já lançou três funcionalidades diferentes.

Enquanto você almoça surge uma nova rede social russa que promete ser o futuro.

Durante a tarde cai um novo ministro do Temer e com ele se vai a relevância do post com um meme que você fez de manhã e o pessoal da arte está produzindo agora.

Nesse meio tempo você tem que justificar por que o texto X não está pronto e Y não está criativo.

E no outro dia/semana é a mesma coisa. Você precisa defender seu trabalho e exaltar suas habilidades como se estivesse em uma entrevista de emprego. Tipo como se fosse a primeira vez que você estivesse fazendo aquilo, entende?

Desanimado

A amnésia de Lucy é involuntária. A do mercado de trabalho é conveniente.

Por que? Porque é mais barato e efetivo diminuir a relevância da jornada de trabalho de um bom profissional de comunicação do que realmente valorizá-lo.

A lógica dos que resumem o jornalismo e a redação publicitária em algo simplório é: se todos nós escrevemos, então deve ser fácil. Logo, se é fácil, leva menos tempo. Se leva menos tempo, tem que ser barato. E nisso chegamos a um mercado que prefere pagar freelancers* (que topam fazer artigos por R$5,00 livres de impostos) do que contratar um profissional com carteira assinada. Ou, na melhor das hipóteses, em regime CLT, mas bem longe de tocar o piso salarial.

Nesse ciclo vicioso se instaurou uma ordem mundial “O Mercado de Trabalho é Assim, Aceite” que somos alertados desde o primeiro semestre da faculdade, e essa premissa é tão incorruptível que ou ela te engole ou ela te quebra. As consequências disso são comunicólogos que trabalham 24/7 (obrigado, WhatsApp) com salários incoerentes e deadlines irreais, sem que isso — em hipótese alguma — interfira na qualidade do seu trabalho ou no seu bom humor durante a rotina.

“Se queixar desses problemas? Como você se atreve?! Tem gente desempregada que mataria por essa vaga! Você não percebe quão mesquinho você soa?”. E graças a essa argumentação o mercado reforça a desvalorização da categoria e ainda espera um agradecimento por te dar o mínimo do mínimo do mínimo.

A solução provável é uma “rebelião das máquinas”, mas quando penso o quão utópico isso soa, me parece mais plausível cada profissional conhecer seus limites e tentar respeitá-los, mesmo que isso seja difícil quando você encara o boleto com o valor do seu aluguel.

No final das contas, das duas uma: ou você se sujeita a fazer freela por cincão por artigo e agradece pela oportunidade em Tempos de Crise™, ou você é visto como um profissional orgulhoso e ingrato, que de tão amargurado vai acabar fazendo texto com referência de filme Adam Sandler para poder reclamar do seu salário.

*Nada contra freelancers. Inclusive tenho vários amigos que são e, às vezes, acabo entrando nessa sacanagem gostosa também. Mas com o tempo e como uma prostituta de luxo, aprendi meu valor.

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