Carta ao Anacleto

nycolas ribeiro
3 min readJun 27, 2017

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Oi vô,

Desculpe escrever só agora. Minha geração tem essa mania de deixar tudo para amanhã, sem perceber que o “amanhã” está mais próximo de virar “ontem” do que imaginamos. Ou talvez eu tenha deixado para escrever só agora porque fui covarde e não conseguia falar com você por telefone. Não reconhecer você em sua voz me doía demais, e aquele tom triste não combinava com você. Mas, hoje, até ele eu aceitaria.

A primeira semana foi bem difícil, vô. Chorei todos os dias na volta do trabalho, até não me importar mais com os olhares desconfortáveis de quem passava por mim. E nesse caminho, as memórias me fizeram companhia, causando uma saudade que era só início da falta que você faz hoje, que, por sua vez, é muito pequena perto do tamanho da falta que você vai continuar fazendo amanhã.

Lembrei das vezes que você me levou à rádio para acompanhar seu programa. No ar, você fazia questão de falar para seus ouvintes que seu neto estava ali, me colocando para cumprimentar os desconhecidos que nos ouviam. Década mais tarde, quando tive um programa de rádio na faculdade, você era um dos meus ouvintes mais fieis, e ao fim de cada edição, fazia questão de ligar para me elogiar e passar algumas dicas de locução. Aprendi mais com você do que com Ferraretto, e você nem deve conhecê-lo.

Lembrei também que a nossa história é feita de inúmeros planos que acabaram na gaveta, como aquele projeto de reformar a piscina da chácara. Nunca fomos para Maceió, não vimos um jogo do Vasco no São Januário e você não terminou de escrever seu livro sobre ética — e eu não me interessei em te cobrar disso. E tudo isso me deixou um gosto amargo na boca, que nem o vinho barato que você deixou na geladeira conseguiu curar.

Entre promessas e histórias, encontrei um pouco de paz nos aprendizados que você deixou: “Sempre respeite sua mãe. Ela é uma mulher incrível!”; “A gente não precisa de religião. A gente precisa de bondade e amor no coração”; “Comer é bom demais. Por que vou me proibir?”. Portanto, mais do que uma conhecida relojoaria e o carinho de quem te conheceu, seus ensinamentos são o seu maior legado.

Mas não são as dicas de locução ou os planos que já nasciam fracassados que vão me fazer falta, vô. É o jeito que você fazia eu me sentir comigo mesmo. Quando nos encontrávamos, era sempre a mesma coisa: você disparava um alegre “Ei Nyck!” seguido de um abraço apertado o suficiente para eu sentir o desconforto da barriga dura de teimosia de um português que não aceitava largar os carboidratos. Depois, com uma feição séria, me olhava nos olhos e dizia: “Você é O cara!”. Em seguida, trazia de volta o sorriso no rosto e concluía com um “nunca se esqueça disso!”.

Não, vô, você que é O cara! Eu ainda estou tentando ser. Ainda me faltam uma coleção de desafios e mais um bocado de erros para aprender. A sorte é que eu sempre vou ter seus ensinamentos para me colocarem no caminho certo, e quando eu me esquecer de algum deles, conto com você para soprar aos meus ouvidos algo novo.

Fique bem. Com amor,

Nycolas.

26/06/2016

Ps.: fiquei com seu anel de São Jorge.

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